quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

ÚLTIMA SESSÃO: JÁ NÃO HÁ CINEMA EM PENICHE

“(...) de uma vez que passei férias em Portugal,
fui para norte. Estive em Peniche – recordo-me
de ir ao cinema, que era frequentado pelos
pescadores, e havia raparigas que passeavam
à noite com os namorados, e isso era muito bom.”

Entrevista a Hugo Pratt
in Corto Maltese no Público, p. 18


Hugo Pratt, um dos maiores escritores de banda desenhada de sempre, andou em tempos pela península de Peniche e pelo concelho, lembrando-se inclusive –como se pode ver pela epígrafe deste artigo- de uma ida ao cinema local. A grata visão das plebeias sessões no Cinemar ter-lhe-ão recordado a sua Itália natal e as moças de altas pernas, vestidos de cetim cingidos à anca escultural e generosos lábios carnudos e molhados dos filmes do Rosselini e do De Sica. (Acho que, sem querer, fiz um tosco esboço da Sofia Loren.)
Infelizmente, os autarcas que decidiram pela condenação do edifício do Cinemar em favor da viabilidade imobiliária, não só não tinham a visão romântica de Pratt, como não tinham qualquer outro tipo de visão digno desse nome. Aliás, ver para além do imediato é o que separa um bom autarca de um vendedor de banha da cobra. Ao contrário do que foi feito noutros locais –veja-se o bom exemplo de Alcobaça- a autarquia de Peniche não investiu num verdadeiro cine-teatro. Terão pensado, nas suas vistas de curtíssimo alcance, que o “cine-teatro do padre” e as suas celestiais condições bastavam a Peniche (e sobravam). Com o fim do Cinemar ficou a sala do Centro Comercial Quarto Crescente. Não era a mesma coisa, mas passou muito e bom cinema ao longo de várias décadas (e sem as irritantes pipocas do cinema sub-desenvolvido). A sala resistiu durante um certo tempo, mas acabou por ter o mesmo destino da outra.
O que explica o fim do cinema na nossa localidade não é apenas a proliferação do DVD pirata, dos downloads, a proibição de pipocas, e as carências económicas e culturais da população (apesar de o Chico-esperto português ter um prazer especial na doce ilegalidade e no facto de ver, de graça, um determinado filme um mês antes dos cem mil portugueses que ainda não aderiram à pirataria). A autarquia, pela mão dos seus responsáveis –quer num, quer noutro caso- negou a persistência do cinema em Peniche. Os autarcas são os verdadeiros responsáveis. (Os carnavais de inverno, de verão e os outros, que ocorrem ao longo do ano, são mais merecedores de investimento...dão mais nas vistas, que é o que interessa. Até parece que lhes leio o pensamento, “o Carnaval é popular, o cinema é elitista”).
Na verdade, desapareceu outra sala de cinema, e a Câmara (mais uma vez) assobia para o lado, como se nada lhe dissesse respeito. À Câmara resta-lhe penitenciar-se –e a partir de agora pode fazê-lo na recentemente convertida sala de cinema do Quarto Crescente- e lavar a cara, apostando num auditório digno de uma cidade que tem de deixar de ser um vilarejo provinciano, coutada e recreio de ‘elites’ pacóvias, estéreis e novo-ricas que é hoje...ainda. (Aproveito para criticar publicamente a aposta naquela espécie de auditório do edifício da Parreirinha. Se não havia condições para fazer algo digno, então qual o interesse de gastar dinheiro naquilo. Esse dinheiro seria mais bem aplicado na compra da sala de cinema do Quarto Crescente, por exemplo. Perdidas aquelas duas oportunidades, a nova biblioteca seria o espaço ideal para fazer um excelente auditório e ressuscitar o cinema).
Quanto à confissão religiosa que irá ocupar o espaço do cinema, e não querendo menosprezar a verve e carisma dos seus oradores, propunha que passassem (dado terem as condições necessárias para isso) uma série de filmes que dizem mais do que todos os pregadores deste mundo, e do outro. Assim, venho por este meio solicitar à confissão que se prepara para residir no Quarto Crescente que, em lugar das celebrações dos primeiros meses, projectassem os seguintes filmes: A Palavra (do Carl Dryer); Morangos Silvestres (Ingmar Bergman); A Sombra do Caçador (Charles Laughton); O Rio (Jean Renoir); todo o Elia Kazan que estiver à mão; O Sol Nasce para Todos e As Vinhas da Ira (John Ford); A Última Sessão (Peter Bogdanovich). Ao levar a cabo semelhante ciclo de cinema, estariam a substituir-se à autarquia, mais concretamente ao pelouro da cultura, na sua altíssima missão de educar as massas. Quem sabe se ao ver o “Young Mr. Lincoln” do John Ford, um qualquer escroque com ambições políticas não se converteria num Obama e salvaria a nação lusa?! Nunca se sabe!


Noel Petinga Leopoldo

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