sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O SEXO E OS BLUES - Breves Apontamentos

Well, I'm a king bee
Buzzin' around yo' hive
Well, I'm a king bee
Buzzin' around yo' hive

                Slim Harpo, King Bee

Os blues estão ligados à sexualidade, como o feijão preto à picanha. Este género musical surgiu entre finais do século XIX e inícios do século XX, numa região dos Estados Unidos da América profundamente arreigada ao racismo e à supremacia branca: o Sul. Foi no cerne da política Jim Crow, de profunda segregação racial, que surgiram os primeiros bluesmen, isto é, indivíduos sem eira nem beira que viam na música uma fuga ao duro trabalho no campo, nomeadamente a apanha do algodão, e que, dezenas de anos antes do estrelato rock, sentiam que como músicos podiam mais facilmente conquistar mulheres. O corpus de letras ‘blues’ é riquíssimo, não só pela vastidão dos temas, como também pelo seu mais ou menos incipiente uso da metáfora, ou outras questões linguísticas como as mensagens encriptadas, isto é, só perceptíveis às pessoas da comunidade negra. Quer fosse a dureza da vida no campo, o escape da bebida, as condições de vida dos negros no sul dos Estados Unidos, o racismo, catástrofes natuarais, sobre tudo se falava nas letras dos primeiros bluesmen.
Não é despiciendo lembrar que um dos clichés racistas que mais propalados foram durante a perseguição racial nos Estados Unidos, prendia-se com o carácter profundamente sexuado e promíscuo dos negros. Não nos esqueçamos que muitos negros (demasiados) foram barbaramente assassinados (a técnica mais usada era a do linchamento, consequente banho de alcatrão quente e penas de aves, e, por vezes, a mutilação do órgão sexual). Isto acontecia muitas vezes porque simplesmente alguém na comunidade branca não gostava do olhar de um negro, ou porque se insinuava, com ou sem motivo, que determinado negro mantinha relações com uma branca.  Os negros (geralmente os mais velhos) que punham o chapéu na mão em sinal de respeito e desviavam o olhar do branco, tinham mais hipóteses de escapar. O cúmulo da hipocrisia era que as mulheres negras – pertencentes a uma raça dita inferior e execrável - eram muito cobiçadas pelos brancos que, supostamente, deveriam sentir nojo só pela proximidade. A carne falava mais alto...fala sempre mais alto.
Feita a contextualização, chegamos ao que interessa, ou seja, o carácter sexual de algumas letras de bluesmen consagrados. O intuito deste artigo não é dar conta da riqueza de temas das letras dos blues, mas sim fazer referência a um tema recorrente: a sexualidade. Assim, o auto-elogio das proezas sexuais e a infidelidade estão entre os temas mais tratados.
Comecemos pelo tema da premonição (muito recorrente nos blues, não estivesse a comunidade negra associada à baixa escolaridade e muito ligada a rituais africanos ancestrais) de que um miúdo está destinado a ser 'levado da breca' e irá levar as mulheres à loucura; é o que temos na primeira estrofe de “Hoochie Coochie Man” de Muddy Waters (traduzindo para um português convencional, poder-se-ia dizer que significa ‘homem danado para a brincadeira’, leia-se, coito:
The gypsy woman told my mother
Before I was born
I got a boy child's comin'
He's gonna be a son of a gun
He gonna make pretty women's
Jump and shout
Then the world wanna know

What this all about
But you know I'm him
Everybody knows I'm him
Well you know I'm the hoochie coochie man
Everybody knows I'm him
Neste excerto da estrofe seguinte não restam dúvidas de que ele é o ‘lover man’ ideal:
I'm gonna make you girls
Lead me by my hand
Then the world will know
The hoochie coochie man
O auto-elogio é também bastante visível numa música aparentada rítmica e melodicamente com a anterior: I’m a Man, de Bo Diddley. Nesta, tal como em muitas outras letras, a proeza vem associada ao tempo de duração do coito. Assim, Diddley não só afirma que é capaz de aguentar uma hora de coito, como afirma inequivocamente que essa hora será de gozo total e irresistível: (as mulheres bem podem começar a fazer fila!)
All you pretty women,
Stand in line,
I can make love to you baby,
In an hour's time.
The line I shoot,
Will never miss,
The way I make love to 'em,
They can't resist.
Outra música que é um standard dos rhythm & blues, "Sixty-minute man", apresenta também uma estrutura imagética relacionada com a proeza sexual do sujeito:
Look a here girls I'm telling you now
They call me "Lovin' Dan"
I rock 'em, roll 'em all night long
I'm a sixty-minute man
O 'eu' não só se apresenta como um amante que faz perdurar uma relação durante uma hora, como ainda faz subentender que tem capacidade para ter mais do que uma relação, quando afirma: " I rock 'em, roll 'em all night long". O termo rock'n'roll é também curioso pois ainda antes de ter sido cunhado pelo DJ Alan Freed na explosão do rock nos anos cinquenta, era já um termo usado para se referir ao acto sexual. Os próprios termos 'rock' (movimentos verticais) e 'roll' (movimentos circulares) podem sugerir o coito. Não foi à toa que, quer pelo facto de ter sido tocada por negros, no início, quer pelo conteúdo 'risqué' (abordagem assanhadamente sexual, mas subliminar) de muitas letras, quer pelos movimentos dos dançarinos, tidos como lascivos, os R&B e o R&R foram banidos das rádios não regionais, até que o fenómeno se tornou tão incontornável (os miúdos brancos ficavam loucos com aqueles ritmos) que a estratégia comercial passou a ser, 'se não podes combatê-los, junta-te a eles. Daí que muitos artistas brancos tenham pegado nesses standards (Pat Boone é apenas um exemplo) para dar um toque menos perigoso. O que os pais não sabiam era que a capa do disco podia ser de um jovem branco tipo ‘genro ideal’, mas o que estava a rolar no gira-discos era o original... provavelmente o Little Richard a gritar como um possuído.
Nos versos seguintes, o 'eu' aparece com a auto-confiança gabarola habitual dizendo que se não acreditam, venham experimentar; é como se estivéssemos no mundo da publicidade, ou seja, 'leve este produto e não se arrependerá'.
If you don't believe I'm all that I say
Come up and take my hand
When I let you go you'll cry "Oh yes,"
"He's a sixty-minute man"
A tal hora de coito aparece repartida em quatro partes. Bem feitas as contas, há 15 minutos de beijos, 15 minutos de 'brincadeira', 15 minutos de apertos e 15 minutos de êxtase(!).

There'll be 15 minutes of kissing
Then you'll holler "please don't stop"
There'll be 15 minutes of teasing
And 15 minutes of squeezing
And 15 minutes of blowing my top
Nesta mesma música o 'eu' apresenta-se como uma espécie de consolador de mulheres mal-casadas:

If your man ain't treating you right
Come up and see ol' Dan
I rock 'em, roll 'em all night long
O poeta e filósofo americano Emerson ficaria embevecido com tanta demonstração de 'self-reliance' (auto-confiança).
O tema da infidelidade e da 'fuga com as calças na mão' está muito bem representada no tema “Back Door Man” de Willie Dixon e celebrizada por Howlin’ Wolf. Back door man é aquele que se escapa pelas traseiras, isto é, o que, com a aproximação do marido da amante, só lhe resta fugir...ao cair da manhã:
I am, a back door man
I am, a back door man
Well the, men don't know, but the little girls understand
When everybody's tryin' to sleep
I'm somewhere making my midnight creep
Yes in the morning, when the rooster crow
Something tell me, I got to go
I am, a back door man
Num outro tema, 'Tail dragger', Howlin' Wolf volta ao tema da infidelidade. Neste caso, a proeza do indivíduo é ter sexo com todas as miúdas que apanha pela frente, sem deixar pistas.
I'm a taildragger
I swipes out my track
When I get what I want
I don't come sneakin' back
Uma particularidade muito curiosa nesta letra tem que ver com o seu carácter metafórico, visível desde logo no título: 'tail dragger' é aquele que arrasta a cauda, neste caso para apagar as pistas. O próprio nome Wolf leva-nos para o carácter animalesco e ameaçador do ‘eu’ (o intérprete). Daí que apareça uma referência a caçadores e à esperteza do 'animal' para lhes escapar (não voltar a atacar a mesma presa e não deixar vestígios).
When the mighty Wolf
Make a midnight creep
Then the hunters
They can't find him
Stealin' chicks
Everywhere he go
Then drag his tail
Behind him
I'm a taildragger
I wipe out my track

Tal como um amante pega num cigarro ao saír de casa da amada, ou salta uma vedação com o regojizo de um coito bem-sucedido, o 'mighty' Wolf abana a cauda (pensando talvez já na sua próxima 'vítima') como sinal de que "somebody's daughter" já teve o prazer de o conhecer (biblicamente falando).

When the mighty Wolf
Come along waggin' his tail
He done stole
Somebody's daughter
Uma música que apresenta um aspecto metafórico bastante original e expressivo é "I'm A King Bee" (zangão), de Slim Harpo. Nesta letra, o sujeito afirma ser um zangão que passa o tempo a assediar a colmeia da mulher amada. Ora, o zangão, como é próprio da espécie, tem um ferrão, sendo que o ‘ferrão’ não é mais do que o seu órgão sexual, e a colmeia, os genitais da mulher amada.
Well, I'm a king bee
Buzzin' around yo' hive
Well, I'm a king bee
Buzzin' around yo' hive

O mel, de que se fala neste dístico seguinte não é mais do que o orgasmo...tudo o que ela tem a fazer é deixá-lo entrar...(!). Há notoriamente um trocadilho presente neste dístico, dado que 'come' em inglês significa ao mesmo tempo entrar ou ter um orgasmo...o curioso é que uma coisa pode levar à outra.

Well, I can make honey, baby
Let me come inside

Também esta letra faz referência à enorme capacidade sexual do 'eu'. De facto, sendo jovem, é bem capaz de satisfazer a parceira a noite toda. O zumbido é o próprio acto sexual.

I'm young and able
To buzz all night long
I'm young and able
To buzz all night long

Se ela aceitar ser a sua parceira (rainha), o resultado será um amor nunca antes visto...

Well, I'm a king bee
Want you to be my queen
Well, I'm a king bee
Want you to be my queen
Together we can make honey
The world ever, never, seen

No dístico seguinte ficamos a saber que o 'eu' está a cobiçar uma mulher que já tem parceiro:
Well, I can buzz better, baby
When yo' man is gone.

Num outro parágrafo aludiu-se à censura ao nível da passagem da música dita de 'race' (música negra) nas maiores estações de rádio, mas muitos são os exemplos de censura no que respeita as letras das músicas. "Shake Rattle & Roll", interpretada por Big Joe Turner e escrita por Charles Calhoun, é um óptimo exemplo daquilo a que me refiro. Mas também podia mencionar uma música que Elvis interpretou "One night With You", que no original aparecia como "One Night of Sin"...Ora, 'love' e 'sin' são coisas bem diferentes. Neste excerto 'censurado', o 'eu' demonstra a maravilha de ter visto as carnes de uma mulher quando o sol lhe permitiu vislumbrar o seu corpo através de um vestido curto. Algo bastante inocente, mas a companhia discográfica não arriscou e cortou os versos:
Well, you wear low dresses, the sun comes shining through
Well, you wear low dresses, the sun comes shining through
I can't believe my eyes all that mess belongs to you

Outro tema recorrente prende-se com a infidelidade por parte da mulher. Um bom exemplo disto é a música "Dust My Broom", de Robert Johnson. Também nesta letra podemos ver o uso da metáfora. De facto, dust the broom significa tirar o pó da vassoura. A vassoura é aqui o órgão sexual e, neste caso, face à infidelidade da amante, 'tirar o pó' significa procurar outra parceira...fazer-se à estrada (hit the road).

I'm gonna get up in the mornin',
I believe I'll dust my broom

Aqui, o 'eu' afirma claramente que pretende deixar o lugar vago para o amante da mulher, pois não pretende ter uma mulher que vai com qualquer homem:

Girlfriend, the black man you been lovin',
girlfriend, can get my room
(...)
I don't want no woman,
Wants every downtown man she meet
She's a no good doney,
They shouldn't 'low her on the street

Nos versos seguintes podemos ver que o rejeitado não perde tempo a chorar sobre leite derramado, mostrando interesse em procurar uma namorada que já conhecia de outras andanças:
I'm gon' call up Chiney,
She is my good girl over there
If I can't find her on Philippine's Island,
She must be in Ethiopia somewhere

Por fim, uma música emblemática de Robert Burnside, cantor de blues da zona montanhosa do norte do Tenessee, lavrador durante a semana e cantor aos fins de semana nos bares das comunidades rurais vizinhas. Nestes versos demonstra o ensejo de experimentar sexualmente outras mulheres...diz ele que pretende ver se as raparigas da Georgia são tão boas como a dele...um argumento, no mínimo, curioso:

I don't know, but I been around, tell me them women shake 'em on down
Yes, I'm goin' Georgia line, see if them women sweet like mine
Nos versos seguintes faz-se referência a um atributo sexual das mulheres daquele estado, isto é, a capacidade de serem boas no felatio (jelly roll, em linguagem codificada), e o facto de se mexerem bem.

I don't know, but I been told, them Georgia women sweet jelly roll
Yeah, I don't know, but I been around, tell me them Georgia women shake 'em on down.

Razões suficientes para que o ‘eu’ vá de malas e bagagens para a Georgia…onde as noites são realmente quentes…e muito húmidas.

Noel Petinga Leopoldo

2 comentários: